Sim, é um genocídio legislado
Por Rodrigo Martins*- Editor Executivo de Carta Capital
Quando a esquadra de Pedro Álvares Cabral aportou na “Terra de Vera Cruz”, estima-se que entre 3 milhões e 5 milhões de indígenas habitavam o atual território brasileiro. As doenças trazidas pelos europeus e a violenta ocupação do território pelos portugueses encarregaram-se de reduzir drasticamente esse contingente durante o período da colonização.
Os censos realizados no Brasil de 1872 a 1980 são de pouca serventia para estimar a população indígena, arbitrariamente catalogada como “cabocla” ou “parda” pelos pesquisadores da época. Os povos originários passaram a ser mapeados pelo IBGE apenas em 1991, com base na autodeclaração de “cor ou raça”, critério que se mantém até hoje.
Naquele momento pudemos ter uma noção mais clara da dimensão do genocídio perpetrado ao longo de 491 anos: restavam apenas 294,1 mil indígenas, o equivalente a 0,2% dos brasileiros. Somente nas últimas três décadas o extermínio foi interrompido – ou melhor, contido. Mesmo com recorrentes ataques de garimpeiros e milícias rurais, mesmo com os eventuais surtos de fome e malária, a população indígena quase sextuplicou, chegando a quase 1,7 milhão de habitantes em 2022.
Houve avanços nas políticas de assistência aos povos originários, mas um elemento determinante para a reversão do quadro de extinção foi a aprovação da Constituição de 1988, a assegurar, no artigo 231, “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Quando Célia Xakriabá, deputada federal pelo PSOL de Minas Gerais e colunista de CartaCapital, alertou em nossas páginas que o “marco temporal” e outros projetos que ameaçam a integridade dos territórios indígenas representam um “genocídio legislado”, ela falou com absoluta propriedade e conhecimento da causa. Mais que uma afronta à Suprema Corte, a aprovação do PL 2.903/2023 pelo Senado, na quarta-feira 27, ameaça a sobrevivência de mais de 300 etnias no Brasil. A iniciativa, não há como tergiversar, representa, sim, a retomada do genocídio indígena.
Os povos originários não enxergam a terra apenas como um punhado de solo, usado para o cultivo ou a construção de moradias. Para eles, o território é muito mais que um meio de subsistência, é onde estão fincadas as raízes de seus antepassados, onde constroem suas identidades individuais e coletivas, onde podem manifestar suas crenças, tradições e costumes. Negar o direito a essas terras ameaça a sobrevivência física e cultural dos indígenas brasileiros.
O projeto do marco temporal restringe as demarcações às áreas efetivamente ocupadas pelos povos originários em 5 de outubro de 1988. Todo o esbulho anterior à promulgação da Constituição estaria legalizado. O texto ainda veda a possibilidade de ampliação das TIs existentes e considera nulas as demarcações que não levaram em conta o tal marco. Isso eliminaria 63% das atuais reservas, incluindo as em processo de homologação.
Embora o Supremo Tribunal Federal tenha declarado essa tese inconstitucional na semana anterior, os ruralistas não tiveram dificuldade para aprovar o PL no Senado em votação relâmpago. Foram 43 votos a 21. O apoio dos “governistas” do Centrão foi decisivo para o trágico desfecho.
A troça do Senado não deve prosperar. Lula vetará o projeto, antecipou Randolfe Rodrigues, líder do governo no Congresso. Ainda que não fosse, ele certamente seria contestado judicialmente. “Não é que o STF tenha criado esse direito fundamental. Ele apenas reconheceu o que estava previsto na Constituição. Não há dúvida de que o projeto é inconstitucional e cabe ao STF declarar isso”, observa o advogado Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo e colunista de CartaCapital.
Este não foi, porém, o único revés sofrido pelos indígenas naquela quarta-feira de infâmia. Enquanto os ruralistas do Congresso apunhalavam os ministros do STF, estes concluíam o julgamento do marco temporal com inovações que dificultam novas demarcações. Embora a tese central tenha sido rejeitada, os magistrados decidiram alterar as regras de indenização aos ocupantes de áreas em processo de demarcação.
Pela norma até então vigente, a União só era obrigada a pagar pelas benfeitorias existentes, como casas, celeiros e currais. O ministro Alexandre de Moraes propôs, porém, que o governo federal também indenize os ocupantes de “boa-fé” pela terra nua – gerando um “gasto incalculável”, segundo um parecer da Advocacia-Geral da União. Pior: as terras só poderão ser destinadas aos povos originários após o pagamento dessas reparações. E, com algumas nuances, a tese de Moraes acabou prevalecendo, como relata a repórter Mariana Serafini na última edição de CartaCapital.
Apenas nos dez maiores lotes em litígio, as indenizações pela terra nua podem ultrapassar a cifra de 1 bilhão de reais, segundo um recente levantamento feito pela Agência Pública. O Projeto de Lei Orçamentária de 2024 prevê, porém, 200 milhões de reais para novas demarcações.
Além de encarecer as demarcações, a decisão do Supremo pode fomentar mais conflitos no campo, alerta o secretário-executivo do Conselho Missionário Indígena, Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira. “Pela decisão do STF, os proprietários só serão obrigados a sair das terras indígenas depois de receber indenização. Eles devem inflar o preço para dificultar o processo.”
* A publicação foi devidamente autorizada pelo autor